História da igreja Cristã Evangélica

 

Os cristãos evangélicos consideram que a sua história começa na eternidade com Deus Pai, Filho e Espírito Santo e, depois do curso do tempo, retoma esta mesma eternidade, porque a esperança futura de “novos céus e nova terra em que habita a justiça” perpassa todo o cristianismo bíblico. A Igreja de Jesus Cristo será reunida a Ele por toda a eternidade porque faz parte de Cristo como Seu corpo, do qual Ele é a cabeça. É no seio da Trindade que no princípio o homem é criado à imagem e semelhança do Criador. O homem e a mulher têm os traços de Deus. Foram criados para viverem na intimidade do Senhor do Universo.

 

Ou somos produto da matéria e da energia segundo o acaso e o acidente, e temos neles a divindade suprema que produziu tudo o que conhecemos e o que não conhecemos no infinitamente grande do universo e no infinitamente pequeno dos elementos do átmo; ou somos criação de um Deus pessoal que a Si mesmo se deu a conhecer na pessoa de Jesus Cristo. Segundo as evidências disponíveis e em fé assumimos de espírito, alma e corpo inteiros a segunda opção e não consideramos sequer a primeira uma alternativa válida. Há muita coisa que ainda não sabemos, existem muitas perguntas em aberto; mas sabemos o suficiente para acreditar em Jesus Cristo e, segundo o Seu ensino, em toda a Bíblia, como Palavra de Deus.

 

Como cristãos evangélicos consideramos a Bíblia digna de todo o crédito, em cada um dos testamentos, na sua vertente histórica; para lá do facto essencial de ser o nosso fundamento único de fé, de doutrina e de prática. Para nós a Bíblia é inspirada, não ditada, por Deus e inerrante em todo o seu conteúdo. Palavra de Deus nas palavras dos homens. Temos uma posição claramente fundamentalista, embora esta posição não possa nem deva ser de modo algum confundida com qualquer tipo de intolerância e muito menos de terrorismo. Respeitamos todas as confissões religiosas mas consideramos que todas elas são apenas a expressão humana da busca de Deus, enquanto na Bíblia temos a revelação do próprio Deus que em carne e osso se manifestou entre nós e no qual conhecemos Deus de modo pessoal, sendo que através d’Ele recebemos a presença do Espírito Santo em nós tornando-nos templos nos quais Ele habita. Como revelação de Deus a Bíblia também nos dá uma panorâmica e análise da busca do homem por Deus ao longo dos tempos que é, em si, tantas vezes, resultado da negação do verdadeiro e genuíno ser divino. Porque o homem recusa o Deus verdadeiro inventa para si ídolos que mais não são do que a deificação da criação e nela de si mesmo. Na Bíblia Deus não é confundido com a criação nem um ser longínquo, distante e indiferente para com a humanidade que criou. No texto sagrado da Bíblia Deus é pessoal, existente em três pessoas distintas – Pai, Filho e Espírito Santo.

 

O Criador de todas as coisas não foi apanhado de surpresa com a desobediência do homem. Desde a eternidade o plano de redenção do homem estava determinado e delineado. No Jardim do Éden Deus revelou o Proto-Evangelho de que da semente da mulher haveria de nascer Aquele que feriria a cabeça da serpente – Genesis 3:15.

 

A História da salvação contida no Velho Testamento é também a História da Igreja Cristã Evangélica. Deus escolheu em Abraão um povo do qual haveria de nascer o Salvador. No patriarca, segundo o decreto divino, seriam abençoadas todas as nações da Terra. A Igreja de Jesus Cristo é constituída por homens e mulheres de todas as nações, de todos os povos, de todas as línguas. Como hoje se diz ela é multicultural, mas na sua diversidade encontramos a singularidade de ser chamado pelo nome do Altíssimo, o nome que é sobre todo o nome.

 

 Desde a Mesopotâmia, passando pelo Egipto, e atravessando os grandes impérios Babilónico, Persa, Medo-Persa, Grego e Romano, chegamos à Palestina de há dois mil anos atrás, quando os anjos anunciaram o nascimento de Jesus Cristo. Ele é o fundador e o edificador da Igreja. É sobre a pedra que é Ele mesmo que a Sua Igreja, que é o Seu corpo, está sendo construída. Segundo o Seu decreto, as portas do Inferno não prevalecerão contra ela. Jesus Cristo é o cerne da Bíblia e o foco da História. Para Ele toda a História aponta e n’Ele se concentra toda a expectativa histórica da Bíblia.

 

Jesus Cristo é Deus entre nós. Deus invadiu a História e habitou neste planeta como criatura. O Criador assumiu a forma da criação e viveu entre ela sentindo todo o peso da sua queda e dando a conhecer todo o seu esplendor em obediência e dependência do Pai, na unção e no poder do Espírito Santo. Este é um mistério singular. Esta é a substância do evangelho. O próprio Deus que na Sua essência estabelece o bem e o mal, o certo e o errado, a verdade e a mentira, a vida e a morte, a santidade e o pecado; que determinou as consequências da queda; veio como homem, vivendo como humano, obedecendo em tudo até à morte e morte de cruz à vontade do Pai e aí satisfez a justiça de Deus para que o homem fosse perdoado. Na cruz se beijaram o amor e a justiça de forma absoluta. Todo o amor de Deus e toda a justiça de Deus estão reunidas e expressas na cruz de Jesus Cristo.

 

Jesus Cristo, o Verbo, o Logos, o Filho de Deus encarnou, viveu entre os homens, morreu, ressuscitou, ascendeu aos céus e prometeu que voltaria uma segunda vez para encerrar definitivamente esta era e dar início a “novos céus e nova terra em que habitará a justiça para sempre”. A missão da Sua Igreja disseminada e infiltrada em todo o mundo, é tornar conhecido este plano, anunciar as boas novas do evangelho “que é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê”, admoestar os homens a reconciliarem-se com Deus e a viver em obediência aos mandamentos que o Seu edificador lhe determinou. A exigência de vida é a perfeição de mãos dadas com a graça que é o favor de Deus que nos aceita tal e qual nós somos, para que por Jesus Cristo nos tornemos como Ele é em nosso carácter.

 

A Igreja de Jesus Cristo é católica e apostólica, mas não é romana, bizantina, grega, ocidental, oriental, americana ou africana. Na diversidade própria de cada cultura há uma unidade na Palavra e no Espírito.

 

A Igreja de Jesus surgiu no meio de uma profunda oposição e perseguição, sem nenhuma conotação com o poder religioso e político. A Igreja cresceu e estendeu-se segundo o mandamento da Grande Comissão entregue pelo Salvador. O poder do Espírito Santo vence toda e qualquer oposição e uma a uma vão caindo todas as barreiras e obstáculos ao progresso do Evangelho. Levantam-se dificuldades internas que procuram minar a pureza da doutrina principalmente no que diz respeito à natureza triúna de Deus e da identidade divina de Jesus Cristo. Segundo a supervisão do Espírito Santo a verdade por Ele revelada na Bíblia prevalece contra todos os ataques.

 

A constantinização da Igreja tornando-a refém do poder político e mais tarde procurando controlar o poder político e viver na dependência das suas benesses económicas, acaba por subverter a sua essência. Em vez das marcas da humildade e do serviço, passamos a encontrar a sobranceria, a opulência, a corrupção, a sede do poder, a prepotência e a violência. Em vez de uma genuína e autêntica conversão do coração a Jesus, o cristianismo torna-se nominal, cultural, mera referência sociológica. Em vez do novo nascimento em que pelo poder do Espírito se é transformado numa nova criação, em filho de Deus, passamos a ter uma adesão a uma organização de onde se pode obter vantagens económico-sociais, ou onde se escapa ao ostracismo senão mesmo a discriminação social.

 

A Idade Média é marcada pelo obscurantismo em que a própria Palavra de Deus é vedada à leitura do povo e até dos líderes, em que o culto se transforma em ritos mecânicos dos quais a população é mero assistente porque nem sequer entende a língua em que é realizado. Introduzem-se doutrinas humanas que não têm fundamento nas Escrituras. Promove-se o sincretismo com as religiosidades e espiritualidades populares pagãs.

 

Em todo o tempo há um remanescente que não se deixa aprisionar pelas heresias e pelos desvios da são doutrina bíblica. Vários são os percursores de uma reforma que se tornava urgente como foi o caso de John Wycliff (c. 1324-1384), de João Huss (1369-1415) e de Jerónimo Savonarola (1452-1498). Muitos deles foram silenciados pela força e enfrentaram a morte, até que Deus usa Martinho Lutero para que algumas das verdades evangélicas essenciais sejam afirmadas publicamente e produzam uma verdadeira revolução social, cultural, política e, acima de tudo e em primeiro lugar, espiritual. Só a Escritura, só a Graça, só a Fé – eis o lema da Reforma protestante ao qual se pode juntar ainda a convicção de uma Igreja sempre em reforma, ou seja, sempre na procura da verdade bíblica. Esta última tendência virá a originar novas reformas dentro da própria reforma, como é o caso da reforma radical que vem a pugnar pela separação da Igreja do Estado; pela conversão genuína identificada pelo baptismo por imersão em idade adulta para a pertença e integração na Igreja de Jesus, sem qualquer forma de coação ou de nominalismo produzido pelo baptismo infantil; pelo pacifismo e recusa de quaisquer formas de guerras político-religiosas. Esta reforma acaba por experimentar uma forte oposição dos grupos reformados que ainda mantiveram vínculos com doutrinas e práticas existentes no catolicismo romano particularmente no que diz respeito à relação de dependência do Estado.

 

Recorremos a uma excelente obra sobre a História da Teologia Cristã publicada pela Editora Vida, da autoria de Roger Olson:

 

“O conjunto total dos reformadores protestantes e de seus seguidores no século XVI pode ser dividido em duas categorias principais: a Reforma magisterial e a Reforma radical. Radical significa, simplesmente, ‘voltar às raízes’ e é lógico que todos os protestantes pretendiam recuperar o verdadeiro evangelho do NT, livrando-o das partes da tradição medieval que achassem que o restringiam e suprimiam. Entretanto, o grupo divergente, de reformadores protestantes, mais radical do que os demais, foi classificado ‘Reforma radical’ ou simplesmente ‘protestantes radicais’ por causa de suas características comuns’. (…) A Reforma radical inclui todos os protestantes da Europa no século XVI que acreditavam na separação entre a igreja e o estado, renunciavam à coerção nas questões da crença religiosa, rejeitavam o baptismo infantil em favor do baptismo dos crentes (também chamado baptismo no Espírito) e enfatizavam a experiência da regeneração (‘nascer de novo’) pelo Espírito de Deus mais do que a justificação forense. Eles evitavam magistrados cristãos e, em geral, procuravam viver o mais longe possível da sociedade. Alguns fundaram comunidades cristãs. A maioria adoptou o pacifismo cristão e um modo de vida singelo. Alguns rejeitavam o treinamento teológico formal e os clérigos profissionais. Todos enfatizavam o viver cristão prático mais do que os credos e as confissões de fé doutrinária.” (OLSON, Roger. História da Teologia Cristã, Editora Vida, pp. 425, 426)

 

A designação  “protestante” surgiu em 1529, após a segunda dieta de Espira, onde os príncipes luteranos do Sacro Império haviam demonstrado o seu “protesto” contra as decisões imperiais que pretendiam restringir a liberdade religiosa do movimento reformista. Por sua vez o termo evangélico nasce entre os protestantes na formação da Liga Evangélica de Esmalcada – criada para defender os interesses dos principados protestantes contra o movimento católico contra-reformista liderado por Carlos V. Esta terminologia é menos agressiva do ponto de vista sociológico que entre nós sempre viu o protestantismo de soslaio, no entanto verifica-se um grande oportunismo por parte de determinados grupos que se servem dele e da sua abrangência de diversidade sem respeitarem os seus traços essenciais bíblicos trazidos de volta pela reforma e pelos movimentos de renovação que os desenvolveram e aprofundaram.

 

Os grandes lemas da Reforma que de forma brilhante sintetizam uma parte essencial do cristianismo bíblico, do evangelho de Jesus Cristo, são : Sola GratiaSola Fides Sola Scriptura(somente a graça, somente a fé, somente a Escritura), que condensam três princípios segundo o qual a reconciliação e a relação do homem com Deus só podem ser alcançados por meio do favor divino e nunca por nunca ser através das obras, pela fé na obra expiatória realizada por Jesus Cristo segundo as Escrituras, única regra de fé e prática. Um dos textos bíblicos que traduz esta essência de forma contundente foi escrito pelo apóstolo Paul o aos Efésios: “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie.” (Efésios 2:8,9). No entanto a doutrina bíblica não desvaloriza o lugar das atitudes e das acções como resultado da salvação. É o mesmo apóstolo que de seguida escreve: “Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas.” (Efésios 2:10). Daí que as Igrejas evangélicas tenham como prioridade a proclamação do evangelho da salvação pela graça mediante a fé segundo a Escritura, e como consequência o ensino que visa o desenvolvimento da fé numa prática consentânea, bem como a implantação de uma acção social abrangente.

 

Desta forma uma das características essenciais do movimento reformado protestante e evangélico é a Bíblia traduzida para as línguas vernáculas de tal forma que o povo a possa ler, analisar, reflectir, interpretar e viver de acordo com a iluminação do Espírito, procurando sempre a interpretação dentro do próprio contexto bíblico, ou seja, a Bíblia a interpretar-se a si própria. O livre exame e uma interpretação no seu contexto bíblico considerando ainda o enquadramento histórico-cultural, sem deixar que este comprometa o primeiro, sempre foi uma marca distintiva da Igreja cristã. Desde o dia de Pentecostes o impulso do Espírito foi no sentido de que as maravilhas de Deus fossem veiculadas em todas as línguas, para todos os povos em todas as geografias num genuíno movimento intercultural e multicultural. A invenção da imprensa por Gutemberg em 1456, acaba por ser, na providência divina e não por mera casualidade histórica, um instrumento decisivo na disseminação do texto sagrado. Hoje em dia a Bíblia está amplamente disponível através dos meios mais modernos de comunicação, como é o digital.

 

O movimento espiritual saído da Reforma acaba por desenvolver-se segundo grandes linhas de força das quais se destaca a separação da Igreja do Estado, a filiação cristã ligada à experiência cristã assumida em consciência e assumida publicamente no baptismo por imersão em idade adulta em vez de uma confissão meramente nominal e cultural, uma atitude mais assumida da propagação do evangelho tanto interna como externa através de agências missionárias, um governo eclesial cada vez mais centrado na comunidade local, a santidade de vida nos valores éticos e nos costumes em intimidade com Deus, o serviço dos mais desfavorecidos, o despojamento da imagem exterior de opulência nos templos e paramentos, uma liturgia cada vez menos formal e rígida para uma celebração espontânea, uma fé não apenas racional mas também emocional e afectiva. Assim na Inglaterra da Igreja Anglicana existem desdobramentos para os puritanos, congregacionais, quacres, metodistas, anabaptistas e baptistas. Na Alemanha do luteranismo para o pietismo, morávios e irmãos. Nos Estados Unidos os pentecostais. Entre um calvinismo predeterminista radical e um arminianismo do livre-arbítrio e da liberdade humana. Claro que estes esquemas não traduzem a riqueza das dinâmicas muito mais intrincadas, sempre em busca de uma identidade cada vez mais próxima da Igreja do primeiro século também designada de primitiva, ou seja a Igreja apostólica que Jesus funda, emana do dia de Pentecostes e continua a ser edificada segundo a Bíblia.

 

O mover do Espírito Santo continua a produzir os seus resultados na Igreja de Jesus de modo a arrebatá-la do conformismo, da estagnação, da mornidão espiritual, da subserviência e dependência do poder do Estado político-social, e numa busca intensa da santidade e da proclamação do Evangelho como poder de Deus para salvação e transformação de todo o que crê. É assim que surgem despertamentos espirituais durante os séculos dezoito, dezanove e vinte que estão na origem das principais denominações protestantes e evangélicos e que são uma acção do Espírito contrária à tendência da fossilização da espiritualidade cristã nominal. É nesta dinâmica que surgem pessoas como John Wesley (1703-1791), Jonathan Edwards (1703-1758), George Whitefield (1714-1770),Charles Spurgeon (1834-1892), Dwight Moody (1837-1899), Charles Finney (1792-1875), William Seymour (1870-1922).

 

 

Se a Igreja de Jesus Cristo está a par do seu tempo pode-se também que algumas vezes o antecipa. Se a sociedade coloca desafios à Igreja, a Igreja não tem deixado de interpelar o seu tempo com os desafios sempre presentes da pessoa de Jesus Cristo e do Seu evangelho. É isto que vemos na modernidade e na pós-modernidade mais próximos de nós com a Reforma protestante e com o avivamento pentecostal. Os perigos continuam a espertar a Igreja na sua identificação com Jesus Cristo e a Igreja do primeiro século. O desafio continua a ser permanente de respeitar a Bíblia como Palavra de Deus. O liberalismo teológico que pretende desmistificar a Bíblia considerando mito tudo que se prende com a manifestação do sobrenatural, contrariado pelo fundamentalismo que defende a inerrância bíblica, o essencial do relato bíblico da criação e nela da criação especial do homem à imagem e semelhança de Deus, da queda do homem pela desobediência e rebeldia, do pecado original que corrompeu a natureza humana, do nascimento virginal de Jesus Cristo, da Sua morte substitutiva e expiatória sem a qual não é possível ser salvo, a ressurreição corpórea, a ascensão física e visível aos céus, a realidade dos milagres na soberania divina e na fé do crente, a segunda vinda de Cristo, no juízo final, no céu e no inferno.

 

 

Sam uel R. Pinheiro

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